Lidar com uma epidemia não é tarefa fácil para as equipes de saúde pública e/ou de biossegurança. E é ainda mais complicado prever quando uma doença está prestes a transformar-se em uma ameaça à segurança da população. De um modo geral, as descobertas e avanços em relação á prevenção e cuidados sempre ocorrem em paralelo à evolução e surgimento de novos casos, o que no dito popular equivaleria a dizer “trocar a roda com o carro em movimento”. Como prever quando é preciso acender o alerta vermelho? A resposta a essa pergunta pode estar onde menos se imagina: nos próprios questionamentos e dúvidas dos profissionais da saúde.

As ferramentas e tecnologias de apoio à decisão clínica, baseadas em evidências, são cruciais no dia a dia do atendimento médico. Elas ajudam a diagnosticar, acompanhar e tratar doenças, inclusive de alta complexidade e aquelas infecciosas que ainda estão em fase de entendimento. Porém, as vantagens desses recursos podem ir muito além. A forma como os médicos utilizam essa ferramenta de referência clínica, as pesquisas que realizam, os tópicos que acessam em determinado período do ano podem também desempenhar um papel único na área de vigilância sanitária ou de biossegurança, ajudando a identificar possíveis gargalos. Os picos ou aumentos significantes na atividade de pesquisa relacionados a algumas doenças infecciosas realizadas em um recurso de apoio à decisão clínica podem sim dizer que algo está errado.  E é isso que está sendo comprovado por um estudo a respeito da utilização de pesquisas clínicas para acompanhar surtos de doenças infecciosas.

Para chegar a essa conclusão, foram analisados dados de pesquisas históricas, anônimas no UpToDate, um recurso online de suporte à decisão clínica utilizado por mais de 1 milhão de médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde em todo o mundo. Acessado via web ou aplicativo móvel, a ferramenta sintetiza as mais recentes pesquisas médicas em mais de 10,5 mil tópicos relacionados a 24 especialidades médicas. Essa análise mencionada teve a atenção voltada para uma doença específica: Síndrome Respiratória do Oriente Médio (do inglês, Middle East respiratory syndrome – MERS). Geograficamente, o foco eram duas cidades da Arábia Saudita (Jeddah e Riyadh), onde três hospitais registraram surtos de MERS em 2014 e 2015.

O que foi identificado foi muito promissor e animador: os tópicos de pesquisas relacionadas ao MERS durante os três surtos registrados na Arábia Saudita revelaram correlação com os casos que foram reportados aos oficiais de saúde pública. Além disso, o volume de pesquisas relacionadas ao MERS nessas duas cidades durante o surto em 2014 foi consideravelmente maior se comparado à quantidade de buscas feitas pelo grupo de controle negativo de quatro outras cidades na Arábia Saudita, que não enfrentaram o surto. Resultados similares foram observados em uma segunda revisão, com base na atividade de pesquisa relacionada a outro surto. No Estado do Arizona, nos Estados Unidos, buscas sobre dengue e o vírus do oeste do Nilo aumentaram depois do registro de alguns casos, reforçando a utilidade desse tipo de comparação.

Basear-se em pesquisas não é novidade: um estudo recentemente levou em consideração buscas feitas no Google para determinar padrões da gripe Influenza. Não que esse tipo de correlação impeça que parâmetros sejam traçados, mas a diferença de tomar como base consultas feitas pelos médicos em um recurso profissional, ao invés de levar consideração as respostas que o público em geral tenta encontrar no Google, é que as buscas desses profissionais são impulsionadas pelo o que eles estão observando no dia a dia, em seus pacientes. Ou seja, os questionamentos geralmente são mais precisos e menos influenciados pelos relatos da mídia ou os receios do público em geral sobre determinado surto, por exemplo. Conhecer possíveis padrões antecipadamente pode ajudar a rastrear as emergências em um intervalo de tempo que viabilize a implementação de campanhas tanto para controlar como para minimizar o impacto de surtos.

Desta forma, enxergar os recursos de apoio à decisão clínica como sistemas de alertas precoces é de grande valia para as organizações de saúde pública, que se desdobram nas tentativas de encontrarem novos caminhos que os ajudem a detectar mais rapidamente os surtos de doenças infecciosas e monitorá-los de maneira mais efetiva. Esperamos que em um futuro próximo essas funcionalidades de biossegurança possam ser alavancadas e, com isso, autoridades, governo e as organizações não governamentais sejam capazes de utilizar dados de pesquisas globais para detecção prévia em paralelo aos sistemas tradicionais de identificação de riscos. Se concretizado, esse tipo de apoio garantirá mais agilidade nas respostas e permitirá que ações sejam tomadas, tanto no sentido de preparar como de conscientizar a população. A tecnologia pode sim ajudar a transformar grandes ameaças em situações perfeitamente controláveis.

Anna Thorner, MD, editora Adjunta de Doenças Infecciosas e Co-Diretora de projetos editoriais no UpToDate, foi responsável por liderar o estudo sobre a utilização de pesquisas clínicas para acompanhar surtos de doenças infecciosas.