Dráuzio Varella é um médico antenado com as novas tecnologias. Além de transmitir conteúdo sobre saúde em múltiplas plataformas, incluindo desde mensagens por SMS até um canal próprio no YouTube, ele é um entusiasta dos benefícios que a Internet, o big data e a inteligência artificial podem trazer para a medicina. Em entrevista a Fernando Paiva, da Mobile Time, Varella fala sobre a sua própria relação com as novas tecnologias e não foge de temas polêmicos, como a reforma da Previdência, a desorganização do SUS, a ganância da indústria farmacêutica e o preconceito que sofre por ser ateu.

Mobile Time – Você é uma celebridade do mundo da saúde. Em grande medida, na minha opinião, seu sucesso se deve ao seu talento como comunicador, à sua capacidade de traduzir para o público médio, de maneira simples e clara, conceitos da medicina. Como você desenvolveu isso?

Dráuzio Varella – Ninguém nasce sabendo. Entrei na faculdade na USP em segundo lugar e  o dono do cursinho me chamou para dar aula. No quarto ano de faculdade, eu e uns amigos resolvemos abrir um cursinho. Era um cursinho de férias e acabou virando o curso Objetivo de educação, o nome fui eu que dei. Eu dei aula por quase 20 anos. O Objetivo chegou a ter 25 turmas cada uma com 40 alunos. Você dava a mesma aula 25 vezes por semana. Um treinamento desses por tantos anos consecutivos nem um ator tem, porque não faz a mesma peça 25 vezes por semana. Quanto à didática, pode ser que eu tivesse jeito, mas é apurada no decorrer de quase 20 anos.

Você está presente em múltiplas plataformas: jornais, TV, YouTube, canais de SMS. Poderia comparar um pouco cada uma delas no que diz respeito ao alcance e ao retorno que você tem do público? O perfil médio do seu público é diferente de acordo com o meio?

É diferente. No YouTube é gente de 15 a 25 anos. No site, a média é de 35 anos, e há mais mulheres do que homens. O site é bastante completo, porque juntamos material há bastante tempo. Hoje, na Internet, recebemos informações de todos os lados, mas que não passam por um crivo… Então, talvez pelo fato de as pessoas me conhecerem da televisão e por terem lido o que eu escrevo, acabei virando uma referência. E como as mulheres são mais interessadas em saúde do que os homens, porque cuidam dos filhos, dos maridos e dos pais, isso explica a predominância delas no site. No Facebook temos 3 milhões de seguidores, a maioria entre 25 e 44 anos e 82% são mulheres. E na TV é bem variado, desde gente jovem até de muita idade e que não tem acesso à Internet.

Me contaram que uma vez você foi abordado na rua por um senhor que declarou ter tido a vida salva por causa de uma mensagem de texto do seu serviço. Poderia relatar essa história?

Estava entrando no hotel em Salvador, tinha uma rampa, e de repente veio um carro no sentido contrario… fiquei meio preocupado na hora. De dentro dele desceram um rapaz e uma moça. O homem veio me cumprimentar, me deu um abraço. Ele tinha visto naquele dia, no celular, uma dica sobre sintomas de infarto. Ele contou que sentiu uma dor no peito quando estava indo para casa, lembrou da recomendação na mensagem e rumou para um pronto-socorro. Chegando lá, fizeram um eletrocardiograma e o internaram imediatamente porque estava infartando. Era numa artéria importante e se demorasse mais tempo para buscar socorro teria tido um infarto fulminante. Esse tipo de experiência acontece muito com coisas menores, não tão dramáticas. Muita gente vem me falar sobre as recomendações que damos. Muitos me contam que largaram o cigarro. Acho que dei um prejuízo danado para as empresas de cigarro. Foi para compensar os 19 anos que fumei.

Você fumou até que idade? Por que parou?

Fumei dos 17 a 36 anos. Parei por vergonha, porque eu sou médico oncologista.

Na TV e no YouTube, vemos você falando. No SMS, lemos dicas de saúde assinadas com seu nome. Você revisa todo o conteúdo que leva a sua assinatura?

Supervisiono sempre. Não tem uma produção que não passe por uma revisão minha. Como parte de mim, a informação tem que estar certa, não pode ter erro.

A Internet é maravilhosa, mas trouxe uma dor de cabeça para os médicos, porque muita gente se consulta com o Dr. Google… Essa farta disponibilidade de informação sobre saúde na Internet, no fim das contas, traz mais benefícios ou malefícios para a nossa sociedade, na sua opinião?

Mais benefícios, sem dúvida. Claro que tem coisas graves, informações que não passam por nenhum crivo. Tem gente que cria lendas. Isso sempre existiu, mas antes se disseminava mais devagar. Agora, num minuto milhões ficam sabendo. São tratamentos milagrosos, espertalhões, realmente, tem todo um lado muito negativo. Mas quando eu penso o que era exercer a medicina antes e depois do Google, a diferença é grande para melhor. Se você descobre que tem asma, você vai ao Google pega informações. O difícil é selecionar aonde ver… Pode ver um site de uma associação de pneumologistas, ou de um médico conhecido… Se você tiver uma referência inicial, ganha muito em termos de informação. Isso pode ajudar o médico também, não apenas o paciente. Quando ponho na balança, vejo que é melhor a medicina com a Internet do que sem ela.

De alguns anos para cá começaram a se popularizar pulseiras e relógios inteligentes que medem passos, calorias queimadas e até batimentos cardíacos e transmitem os dados para apps nos smartphones. Consequentemente, emergiu a preocupação quanto à privacidade de dados pessoais de saúde. Grandes empresas e órgãos de governo já sabem com quem conversamos, o que conversamos, por onde andamos e agora poderão saber também como está a nossa saúde. Este tema te preocupa?

A privacidade é crucial na Internet. Isso me preocupa muito. Na Internet você compra uma camiseta num site e confia que ninguém vai usar seu número de cartão de crédito para comprar uma passagem aérea. Essa questão é fundamental. A Internet é muito falha ainda nesse ponto. Você entra na Internet para reservar um hotel, digamos, para Nova Iorque, escolhe um, passa um tempo, entra no seu email e do lado aparece uma promoção de viagem para Nova Iorque.

Meu receio é de que dados de saúde coletados por esses acessórios de vestir comecem a ser usados por terceiros até mesmo na contratação de funcionários.

O gasto com saúde é o segundo maior gasto das corporações, perde apenas para a folha de pagamento. Se conseguirem esse tipo de informação…. Qual escolheriam em um processo de seleção: uma pessoa que corre 4 Km por dia ou uma sedentária? O risco com a primeira é menor. Não temos segurança sobre quais dados estão circulando. Mas, ao mesmo tempo, esses acessórios são úteis para saber se você está com frequência cardíaca elevada. Isso pode indicar um sintoma… A contagem de passos também é importante. Para ser considerado ativo tem que dar 10 mil passos por dia. Se você está chegando em casa e constata que deu 8 mil, de repente resolve andar um pouco mais para atingir a meta. Você passa a ter esse controle. É um lado positivo, desde que você não fique neurótico.

Você é maratonista. Já experimentou alguma dessas pulseiras?

Hoje eu corro sem relógio porque me deixava neurótico. Eu ficava o tempo todo olhando. Corro maratona sem relógio. Quando termina eu vejo no site os resultados oficiais para saber em quanto tempo fiz.

Também se fala na possibilidade de diagnosticar doenças por meio de softwares, com inteligência artificial, comparando uma base enorme de dados históricos, o que poderia ser mais preciso do que a avaliação de um médico. Como você vê o desenvolvimento dessas ferramentas e qual o impacto delas sobre a medicina e sobre o papel desempenhado pelo médico?

Sou familiarizado com o Watson, da IBM. O programa de câncer de mama do Watson é muito interessante porque usa os dados dos doentes para te apresentar as opções de tratamento, com as vantagens e desvantagens de cada um. Isso ajuda o médico, porque ele não tem condição de acompanhar tudo o que está acontecendo. Eu estudo, vou a congressos, e mesmo assim volta e meia aparece algo que nunca tinha visto na minha especialidade, que é câncer de mama. Quanto à relação médico-paciente, eu não vejo como um problema. Uma coisa não vai substituir a outra. O paciente sempre vai precisar de alguém que filtre essa informação toda e o ajude a decidir qual o melhor caminho a seguir. Essa é a diferença do médico moderno e aquele do passado. O do passado redigia uma lista de remédios com garranchos que só os farmacêuticos entendiam. O paciente não podia perguntar nada e se não fizesse o tratamento direito ainda era mandado embora. O médico era uma autoridade. A função do médico é dar alternativas. Quais as desvantagens de cada uma delas, indicar uma outra e explicar o porquê. No final, você tem que chegar a um consenso. A tecnologia só ajuda, porque ela me dá todos os dados que preciso para te aconselhar.

Há um site chamado Adjuvant! Online que analisa dados de câncer de mama de pacientes e mede o risco de a doença voltar com quimioterapia ou hormonioterapia. O sistema te informa o risco de cada tratamento, com base num banco de dados enorme. Então, por exemplo, se a chance de cura for de 92% sem quimioterapia por que fazê-la? Esse tipo de  informação é absolutamente fundamental. Assim não ficamos mais dependentes da impressão do médico.

Acredita que robôs farão cirurgias no futuro, sem o auxílio de um médico? Por quê?

Por enquanto é ficção. Mas uma operação remota com a ajuda de um robô já é possível de alguma forma. Um aparelho de tomografia computadorizada pode ser instalado em um lugar distante e servir para toda uma região remota que não conta com um médico no local. Em vez de deslocar um profissional, as imagens são enviadas para leitura em outros centros. Isso já é feito nos EUA bastante. Eu já fiz atendimentos remotos por videoconferência.

O governo atual está propondo uma reforma da Previdência. Diz que as contas não fecham. Do outro lado, critica-se que brasileiro terá que trabalhar até morrer. Você tem uma posição sobre o assunto?

Os economistas todos dizem que se a Previdência se mantiver desse jeito vai quebrar e não teremos dinheiro para pagar, o que parece ter lógica. A faixa da população que mais cresce é aquela acima dos 60 anos. Desta forma, permitir que todo mundo consiga se aposentar na faixa dos 50 anos é um absurdo. Talvez haja alguma categoria, como quem trabalha na roça, ou quem descarrega caminhão… Mas é uma minoria… Um funcionário público se aposentar com 50 anos é inviável. Minha mulher tem uma tia que fez 103 anos recentemente e se aposentou com menos de 50 anos. Ela trabalhou 30 anos, começou cedo, e está aposentada há 55 anos. E está lúcida, mora sozinha. Antigamente se dizia “sexagenário” como hoje se fala “centenário”.

Nos EUA, Trump está acabando com o Obamacare. Você teme que em algum momento comece a se discutir a sério no Brasil o fim do SUS?

Acho que isso não vai acontecer. Acho difícil porque a classe médica é avessa ao fim do SUS. O SUS foi um grande avanço na medicina brasileira. Lógico que tem problemas, mas também tem áreas que são exemplo no mundo todo. Temos o maior programa de vacinação gratuita do mundo. O sistema de resgate e transplante de órgãos é também o maior do mundo gratuito. O programa Saúde da Família é citado como exemplo de sucesso em todos os lugares. Mas a imagem do SUS é de desorganização, de interferência política nos níveis mais baixos. Tem interferência direta, com indicação de médico de posto ou de diretor por político, o que facilita a corrupção e dificulta a organização dos serviços porque a cada quatro anos muda todo mundo. Qual empresa troca todo mundo a cada quatro anos por critério político e não técnico? Acho que o SUS tinha que ser blindado contra esse tipo de interferência. E desvio de dinheiro do SUS devia ser crime hediondo. Pegam um moleque com 50 gramas de cocaína e mandam para cadeia por quatro anos. E um cara que desvia dinheiro do SUS? Quantos medicamentos vencidos temos nas diversas esferas do SUS? Ninguém sabe esse número. Esse problema acontece por desorganização, má gestão e também corrupção.

A tecnologia poderia ajudar, não?

A tecnologia poderia ajudar muito. O pior desperdício do SUS é o desperdício de informação.

Você é um ateu praticante. Já sofreu discriminação por ser ateu?

Não sou ateu militante. É tão chato quanto ser evangélico ou muçulmano militante. É uma opção pessoal, como uma religião. Não tem que ficar tentando convencer os outros ou incutir seu pensamento nos outros. Não faço esse proselitismo de jeito nenhum. Não fico convencendo os outros, mas não tenho porque esconder uma coisa dessas. Os religiosos querem o monopólio das virtudes humanas. Acham que se você não acredita em Deus e não vai à igreja você deve ser uma pessoa devassa, pecaminosa ou sem caráter. Isso não é verdade. Veja esses senhores da Lava-jato: são todos católicos, talvez evangélicos. Tem gente honesta religiosa e não religiosa, e tem ladrões dos dois lados.

Mas você já sofreu preconceito por ser ateu?

Existe um preconceito. Eu sinto esse preconceito. Algumas pessoas se decepcionam comigo quando descobrem que sou ateu. É um resquício da Idade Média, quando ateu era considerado um inimigo público. Mas em alguns ambientes recebo total respeito. Em outros, onde as pessoas são mais fanáticas, eu sinto esse preconceito com total clareza.

Gostaria de comentar algum outro tema?

Os medicamentos atuais, os principais contra câncer e doenças cardiovasculares, são obtidos com tecnologias sofisticadas. Observa-se que a doença tem certo mecanismo molecular para se instalar ali e progredir; são identificadas as moléculas envolvidas nessa reação e se descobre que ativando determinada molécula a reação é impedida. Isso se chama design molecular. Então é construída em laboratório uma outra molécula para desativar aquela que é fundamental para a cascata de reações que levam à patologia. Têm surgido várias drogas assim. Só que elas entram no mercado a um preço inacreditável. Hoje recebi propaganda de uma droga que vem dos EUA e que é dirigida a 5% dos casos de câncer do pulmão que apresentam determinada condição genética. Com a droga esses pacientes vivem mais tempo do que aqueles tratados com quimioterapia. É para ser administrada a cada três semanas, ao custo de R$ 26 mil cada vez.

E quanto tempo dura o tratamento?

É para usar enquanto estiver vivo.

Geralmente os laboratórios culpam o custo de pesquisa pelos preços altos…

Antes vinham com a conversa das pesquisas. Agora nem falam mais isso. Mas quanto é pesquisa? E quanto custa fazer a droga? Por que nos medicamentos não se sabe quanto é o lucro? Isso não é aberto de jeito nenhum, é um buraco negro. Esse argumento da pesquisa foi torpedeado por cientistas do mundo inteiro. Agora (os laboratórios) não têm mais vergonha: dizem que os acionistas querem ter lucro. Usam tecnologia máxima como uma máquina de lucro sem preocupação com as pessoas que poderiam se beneficiar dela.

Tem uma droga para hepatite C chamada sofosbuvir. Antigamente se tomava interferon e ribavirina. Era um tratamento muito duro que limpava o vírus em 30% dos casos. Com o sofosbuvir o paciente toma por 90 dias um comprimido por dia e elimina o vírus em mais de 90% dos casos. Quando saiu nos EUA, o New York Times publicou matéria de primeira página chamando-a de pílula de US$ 1 mil, porque eram 84 comprimidos por US$ 84 mil. A Índia tem milhões de pessoas com hepatite C e decidiu quebrar a patente. Aí começou uma queda de braço e o laboratório foi baixando o preço até que chegou a US$ 800 pelo tratamento inteiro. Os indianos ainda acharam caro e quebraram a patente assim mesmo. E agora estão produzindo a pouco mais de US$ 300. Ou seja, queriam US$ 84 mil e dava para fazer por US$ 300! Era para prender todo mundo no ato! A tecnologia produz avanços maravilhosos mas que chegam ao mercado a preços proibitivos.

Entrevista originalmente publicada no Mobile Time.