Decidi escrever novamente sobre como filmes de ficção científica estão nos induzindo a avaliar os desafios e dilemas que se apresentam na jornada da revolução digital pela qual a Saúde está passando e ainda passará nos anos a frente. Os dois artigos anteriores que publiquei em Junho abordaram como tema central “Quando a Ficção se torna Realidade na Saúde Digital” (parte 1 e parte 2) e destacaram algumas tecnologias que estão se incorporando no mercado de Saúde.

Porém, um outro filme agora entra no rol daqueles que provocarão muito debate sobre os limites da tecnologia. No começo deste mês de outubro/2017 foi lançado “Blade Runner 2049”, que dá sequência ao já cultuado filme Blade Runner, o Caçador de Androides (lançado em 1982 pela Warner Brothers), no qual ator Harrison Ford (também famoso por sua atuação como Han Solo e Indiana Jones) faz o papel de um policial caçador de androides quando estes se revoltam. Esses androides são similares aos humanos – e por isso chamados de replicantes ao serem elaborados através de bioengenharia genética.

Sem querer entrar no debate de crítica artística do filme, pois não sou competente para isso e há inúmeros sites especializados na área de cinema, o que gostaria de debater com os leitores são alguns dos temas que o novo filme aborda:

  • a sinergia da robótica com a engenharia genética imprimindo de órgãos a seres humanoides;
  • a insegurança de nossos registros pessoais armazenados na internet, refletindo sobre a nossa existência e dependência de um mundo quase 100% digital;
  • a fusão da inteligência artificial com a realidade mista que interagem com o lado emocional dos humanos.

A – Órgãos humanos serão impressos biodigitalmente

No filme, seres replicantes inteiros são “impressos” para desempenhar tarefas que os humanos não desejam mais realizar, em especial quando são arriscadas e em ambientes danosos a saúde.

Talvez falar de impressão de um rim ou de outro órgão humano pode soar como algo que habita somente a ficção científica, mas com os avanços na tecnologia de impressão em 3D, a ideia pode não ser tão exagerada. A impressão 3D tradicional, também conhecida como fabricação de aditivos, é um processo de fazer objetos sólidos tridimensionais a partir de um modelo digital e já faz parte de nossa realidade atual. Os preços de tais impressoras 3D já são baixos o suficiente (algumas perto de R$ 3 mil) para até termos uma em casa ou no escritório.

Porém, as bioprinters usam uma “bio-tinta” composta de misturas de células vivas para formar tecido humano. Basicamente, a “bio-tinta” é usada para construir uma estrutura 3D de células, camada por camada, para formar tecidos, membros e em breve órgãos completos. Veja o vídeo a seguir sobre como cientistas usam uma impressora 3D e “tinta viva” para criar partes do corpo.

O dilema ético ainda é enorme nesta área. Não se trata mais de considerar a viabilidade tecnológica, que avança rapidamente, mas como lidaremos com esta nova “caixa de Pandora”? Vamos poder imprimir membros e órgãos para todos que precisam ou esta também será uma tecnologia na saúde que poucos terão acesso?

B – Nossa existência e dependência pessoal de um mundo quase 100% digital

O filme mostra um desafio enorme quando se tenta resgatar registros antigos de uma pessoa e que ajudaria a solucionar o mistério que o principal personagem da trama tenta desvendar (não vou contar os detalhes para não estragar a trama do filme para aqueles que ainda não o assistiram). Mas como houve um atentado anos antes que literalmente apagou todos os registros digitais existentes, praticamente uma parte da história ficou perdida ou difícil de ser reconstituída.

Essa questão da segurança de nossos dados virtuais é muito debatido hoje devido aos hackers, e mais recentemente aos ataques sofridos no setor da saúde por empresas e governos, como com o vírus Wanna Cry que infectou mais de 300.000 computadores de 150 países em maio deste ano, e o Brasil não ficou imune. Os dados abaixo indicam que o setor de saúde é um dos mais afetados por falhas de segurança digital, e por isso propenso a grandes impactos na vida das pessoas, que pode se transformar em uma verdadeira questão de “vida ou morte”.

 

A segurança de nossos dados em um mundo cada vez mais virtual, com informações armazenadas em computadores interligados globalmente, também é um desafio social e pessoal. Continuaremos no controle de nossas vidas e de nossa história quando tudo passa a ser arquivado e analisado por máquinas e softwares? Que segurança teremos com nossos dados médicos armazenados na Nuvem de computadores?

C – A fusão total da inteligência artificial com a realidade mista

No artigo que escrevi com o tema “Na Saúde Digital, qual o limite para o uso da Inteligência Artificial?, citei um polêmico comentário do empresário Elon Musk.

” A Inteligência Artificial é o caso raro, onde eu acho que precisamos ser pró-ativos na regulamentação em vez de reativos. Porque penso que quando estivermos reativos na regulamentação da Inteligência Artificial, será tarde demais. A Inteligência Artificial é um risco fundamental para a existência da civilização humana“- Elon Musk

Não que pessoalmente concorde totalmente com a frase polêmica de Elon Musk, mas que o tema da Inteligência Artificial precisa ser analisado mais amplamente, isso sim parece ser fazer todo sentido.

No filme, o principal personagem (vivido pelo ator Ryan Gosling, que também atuou no musical LaLaLand) é um policial que se relaciona com uma namorada virtual, que com uso da holografia e inteligência artificial avançada, quase parece um ser humano real. O ponto focal não é se a tecnologia é capaz de recriar a personagem holográfica, mas a sua relevante interação emocional e afetiva com o policial.

Hoje já temos recursos tecnológicos disponíveis para vivermos experiências bem realísticas através de realidade mista (virtual, aumentada e holográfica). Os fãs de games já conseguem com seus óculos de realidade virtual viajar para mundos imaginários e viverem aventuras com grande realismo sensorial. Mas o que dizer dos bilhões que já vivem vidas paralelas nas mídias sociais, que se tornaram psicologicamente dependentes destes recursos técnicos até para poderem sentir-se parte de uma comunidade de “amigos virtuais”, apesar de no mundo real serem solitários e reclusos?

Aonde a realidade e a fantasia virtual se misturam? Como isso está repercutindo na saúde mental e física das pessoas? O sociólogo americano Robert Weiss escreveu na década de 70, que existem dois tipos de solidão: a emocional e a social. Segundo ele, “a solidão emocional é o sentimento de vazio e inquietação causada pela falta de relacionamentos profundos. A solidão social é o sentimento de tédio e marginalidade causado pela falta de amizades ou de um sentimento de pertencer a uma comunidade”. Vários estudos científicos já estão mostrando os efeitos da dependência tecnológica na vida das pessoas, em alguns casos tão graves que são comparados aos dependentes de drogas.

Para concluir, gostaria de citar as oportunas palavras do diretor do filme “Blade Runner 2049”, o cineasta canadense Denis Villeneuve, na entrevista da Revista Veja desta semana (edição 2.551, 11/10/17):

“O que me preocupa é que, quanto mais intenso é o nosso contato com a tecnologia, mais frágil é o nosso contato com a realidade”- Denis Villeneuve, cineasta

Abraço a todos!

 Guilherme Rabello responde pela Gerencia Comercial e Inteligência de Mercado do InovaInCor – InCor / Fundação Zerbini (grabello.inovaincor@zerbini.org.br). Atua como consultor, palestrante e escreve artigos sobre inovação, tecnologia e negócios.